sexta-feira, 24 de outubro de 2008

Maquina do Mundo

O Universo é feito essencialmente de coisa nenhuma.
Intervalos, distâncias, buracos, porosidade etérea.
Espaço vazio, em suma.
O resto, é a matéria.

Daí, que este arrepio,
este chamá-lo e tê-lo, erguê-lo e defrontá-lo,
esta fresta de nada aberta no vazio,
deve ser um intervalo.

António Gedeão
(Máquina de fogo)

quarta-feira, 15 de outubro de 2008

Poema para o meu amor doente

Hoje roubei todas as rosas dos jardins
e cheguei ao pé de ti de mãos vazias.

Eugénio de Andrade
(As mãos e os frutos)

história de cão

eu tinha um velho tormento
eu tinha um sorriso triste
eu tinha um pressentimento

tu tinhas os olhos puros
os teus olhos rasos de água
como dois mundos futuros

entre parada e parada
havia um cão de permeio
no meio ficava a estrada

depois tudo se abarcou
fomos iguais um momento
esse momento parou

ainda existe a extensa praia
e a grande casa amarela
aonde a rua desmaia

estão ainda a noite e o ar
da mesma maneira aquela
com que te viam passar

e os carreiros sem fundo
azul e branca janela
onde pusemos o mundo

o cão atesta esta história
sentado no meio da estrada
mas de nós não há memória

dos lados não ficou nada

Mário Cesariny
(Uma grande razão)
Ah a frescura na face de não cumprir um dever!
Faltar é positivamente estar no campo!
Que refúgio o não se poder ter confiança em nós!
Respiro melhor agora que passaram as horas dos encontros.
Faltei a todos, com uma deliberação de desleixo,
Fiquei esperando a vontade de ir para lá, que eu saberia que não vinha.
Sou livre, contra a sociedade organizada e vestida.
Estou nu, e mergulho na água da minha imaginação.
É tarde para eu estar em qualquer dos dois pontos onde estaria à mesma hora,
Deliberadamente à mesma hora...
Está bem, ficarei aqui sonhando os versos e sorrindo em itálico.
É tão engraçada esta parte assistente da vida!
Até não consigo acender o cigarro seguinte... Se é um gesto,
Fique com os outros, que me esperam, no desencontro que é a vida.

Álvaro de Campos
Cala os olhos, vagabundo.

Não me digas
que há estradas no mundo
sem urtigas.

Não me contes
que nascem astros nos vales
para além dos horizontes.

Não me fales
de haver poentes
com as cores ardentes
das penas dum galo.

Não me tentes,
vagabundo.
Não quero ver o mundo.

Prefiro imaginá-lo.

José Gomes Ferreira
(Poesia III)

Porque

Porque os outros se mascaram mas tu não
Porque os outros usam a virtude
Para comprar o que não tem perdão.
Porque os outros têm medo mas tu não.

Porque os outros são os túmulos caiados
Onde germina calada a podridão.
Porque os outros se calam mas tu não.

Porque os outros se compram e se vendem
E os seus gestos dão sempre dividendo.
Porque os outros são hábeis mas tu não.

Porque os outros vão à sombra dos abrigos
E tu vais de mãos dadas com os perigos.
Porque os outros calculam mas tu não.

Sophia de Mello Breyner Andresen
(Mar novo)

As fontes

Um dia quebrarei todas as pontes
Que ligam o meu ser vivo e total,
À agitação do mundo irreal,
E calma subirei até às fontes.

Irei até às fontes onde mora
A plenitude, o límpido esplendor
Que me foi prometido em cada hora,
E na face incompleta do amor.

Irei beber a luz e o amanhecer
Irei beber as voz dessa promessa
Que às vezes como um voo me atravessa,
E nela cumprirei todo o meu ser.

Sophia de Mello Breyner Andresen
Fingir que está tudo bem: o corpo rasgado e vestido com roupa passada a ferro, rastos de chamas dentro do corpo, gritos desesperados sob as conversas: fingir que está tudo bem: olhas-me e só tu sabes: na rua onde os nossos olhares se encontram é noite: as pessoas não imaginam: são tão ridículas as pessoas, tão desprezíveis: as pessoas falam e não imaginam: nós olhamo-nos: fingir que está tudo bem: o sangue a ferver sob a pele igual aos dias antes de tudo, tempestades de medo nos lábios a sorrir: será que vou morrer?, pergunto dentro de mim: será que vou morrer?, olhas-me e só tu sabes: ferros em brasa, fogo, silêncio e chuva que não se pode dizer: amor e morte: fingir que está tudo bem: ter de sorrir: um oceano que nos queima, um incêndio que nos afoga.

José Luís Peixoto
(A criança em ruinas)

De produndis amamus

Ontem
às onze
fumaste
um cigarro
encontrei-te
sentado
ficámos para perder
todos os teus eléctricos
os meus
estavam perdidos
por natureza própria

Andámos
dez quilómetros
a pé
ninguém nos viu passar
excepto
claro
os porteiros
é da natureza das coisas
ser-se visto
pelos porteiros

Olha
como só tu sabes olhar
a rua os costumes

O público
o vinco das tuas calças
está cheio de frio
e há quatro mil pessoas interessadas
nisso

Não faz mal abracem-me
os teus olhos
de extremo a extremo azuis
vai ser assim durante muito tempo
decorrerão muitos séculos antes de nós
mas não te importes
não te importes
muito
nós só temos a ver
com o presente
perfeito
corsários de olhos de gato intransponível
maravilhados maravilhosos únicos
nem pretérito nem futuro tem
o estranho verbo nosso

Mário Cesariny
(Uma grande razão)

Juventude

Sim, eu conheço, eu amo ainda
esse rumor abrindo, luz molhada,
rosa branca. Não, não é solidão,
nem frio, nem boca aprisionada.
Não é pedra nem espessura.
É juventude. Juventude ou claridade.
É um azul puríssimo, propagado,
isento de peso e crueldade.

Eugénio de Andrade
(Até amanhã)
Deste modo ou daquele modo,
Conforme calha ou não calha,
Podendo às vezes dizer o que penso,
E outras vezes dizendo-o mal e com misturas,
Vou escrevendo os meus versos sem querer,
Como se escrever não fosse uma cousa feita de gestos,
Como se escrever fosse uma cousa que me acontecesse
Como dar-me o sol de fora.

Procuro dizer o que sinto
Sem pensar em que o sinto.
Procuro encostar as palavras à ideia
E não precisar dum corredor
Do pensamento para as palavras.

Nem sempre consigo sentir o que sei que devo sentir.
O meu pensamento só muito devagar atravessa o rio a nado
Porque lhe pesa o fato que os homens o fizeram usar.

Procuro despir-me do que aprendi,
Procuro esquecer-me do modo de lembrar que me ensinaram,
E raspar a tinta com que me pintaram os sentidos,
Desencaixotar as minhas emoções verdadeiras,
Desembrulhar-me e ser eu, não Alberto Caeiro,
Mas um animal humano que a Natureza produziu.

Alberto Caeiro
(O guardador de rebanhos)

Liberdade

Aqui nesta praia onde
Não há nenhum vestígio de impureza,
Aqui onde há somente
Ondas tombando ininterruptamente,
Puro espaço e lúcida unidade,
Aqui o tempo apaixonadamente
Encontra a própria liberdade.

Sophia de Mello Breyner Andresen
(Mar)
Príncipe:
Era de noite quando eu bati à tua porta
e na escuridão da tua casa tu vieste abrir
e não me conheceste.
Era de noite
são mil e umas
as noites em que bato à tua porta
e tu vens abrir
e não me reconheces
porque eu jamais bato à tua porta.
Contudo
quando eu bati à tua porta
e tu vieste abrir
os teus olhos de repente
viram-me
pela primeira vez
como sempre de cada vez é a primeira
a derradeira
instância do momento de eu surgir
e tu veres-me.
Era de noite quando eu bati à tua porta
e tu vieste abrir
e viste-me
como um náufrago sussurando qualquer coisa
que ninguém compreendeu.
Mas era de noite
e por isso
tu soubeste que era eu
e vieste abrir-te
na escuridão da tua casa.
Ah era de noite
e de súbito
tudo era apenas lábios pálpebras
intumescências cobrindo o corpo de flutuantes
volteios de palpitações trémulas adejando
pelo rosto beijava os teus olhos por dentro.
Beijava os teus olhos pensados
beijava-te pensando
e estendia a mão
sobre o meu pensamento corria para ti
minha praia jamais alcançada
impossibilidade desejada
de apenas poder pensar-te.

São mil e umas
as noites em que não bato à tua porta
e vens abrir-me.

Ana Hatherly
(Poesia 1958-1978)

Fidelidade

Diz-me devagar coisa nenhuma, assim
como só a presença com que me perdoas
esta fidelidade ao meu destino.
Quanto assim não digas é por mim
que o dizes. E os destinos vivem-se
como outra vida. Ou como solidão.
E quem lá entra? E quem lá pode estar
mais que o momento de estar só consigo?

Diz-me asim devagar coisa nenhuma:
o que à morte se diria, se ela ouvisse,
ou se diria aos mortos, se voltassem.

Jorge de Sena
(Poesia II)

You are welcome to Elsinore

Entre nós e as palavras há metal fungente
entre nós e as palavras há helices que andam
e podem dar-nos morte violar-nos tirar
do mais fundo de nós o mais útil segredo
entre nós e as palavras há perfis ardentes
espaços cheios de gente de costas
altas flores venenosas portas por abrir
e escadas e ponteiros e crianças sentadas
à espera do seu tempo e do seu precipício

Ao longo da muralha que habitamos
há palavras de vida há palavras de morte
há palavras imensas, que esperam por nós
e outras, frágeis, que deixaram de esperar
há palavras acesas como barcos
e há palavras homens, palavras que guardam
o seu segredo e a sua posição

Entre nós e as palavras, surdamente,
as mãos e as paredes de Elsinore

E há palavras nocturnas palavras gemidos
palavras que nos sobem ilegíveis à boca
palavras diamantes palavras nunca escritas
palavras impossíveis de escrever
por não termos connosco cordas de violinos
nem todo o sangue do mundo nem todo o amplexo do ar
e os braços dos amantes escrevem muito alto
muito além do azul onde oxidados morrem
palavras maternais só sombra só soluço
só espasmos só amor só solidão desfeita

Entre nós e as palavras, os emparedados
e entre nós e as palavras, o nosso querer falar

Mário Cesariny
(Uma grande razão)

Wild is the wind

Love me, love me, love me, love me say you do
Let me fly away with you
For my love is like the wind
And wild is the wind
Wild is the wind

Give me more than one caress
Satisfy this hungriness
Let the wind blow through your heart
Oh wild is the wind
Wild is the wind
You touch me
I hear the sound of mandolins
You kiss me
With your kiss my life begins
You're spring to me
All things to me
Don't you know you're life itself

Like the leaf clings to the tree
Oh my darling cling to me
For we're like creature of the wind
And wild is the wind
Wild is the wind
Que fizeste das palavras?
Que conta darás tu dessas vogais
de um azul tão apaziguado?

E das consoantes, que lhes dirás,
ardendo entre o fulgor
das laranjas e o sol dos cavalos?

Que lhes dirás, quando
te perguntarem pelas minúsculas
sementes que te confiaram?

Eugénio de Andrade
(Matéria Solar)

Paraíso

Deixa ficar comigo a madrugada,
para que a luz do Sol me não constranja.
Numa taça de sombra estilhaçada,
deita sumo de lua e de laranja.

Arranja uma pianola, um disco, um posto,
onde eu ouça o estertor de uma gaivota...
Crepite, em derredor, o mar de Agosto...
E o outro cheiro, o teu, à minha volta!

Depois, podes partir. Só te aconselho
que acendas, para tudo ser perfeito,
à cabeceira a luz do teu joelho,
entre os lençois o lume do teu peito...

Podes partir. De nada mais preciso
para a minha ilusão do Paraíso.

David Mourão-Ferreira
(Infinito Pessoal)
A felicidade é como a pluma
Que o vento vai levando pelo ar
Voa tão leve
Mas tem a vida breve
Precisa que haja vento sem parar

Vinicius de Morais
Pela manhã de junho é que eu iria
pela última vez.
Iria sem saber onde a estrada leva

E a sede.

Eugénio de Andrade
(Matéria Solar)

terça-feira, 14 de outubro de 2008

Eu queria mais altas as estrelas,
Mais largo o espaço, o sol mais criador,
Mais refulgente a lua, o mar maior,
Mais cavadas as ondas e mais belas;

Mais amplas, mais rasgadas as janelas
Das almas, mais rosais a abrir em flor,
Mais montanhas, mais asas de condor,
Mais sangue sobre a cruz das caravelas!

E abrir os braços e viver a vida,
- Quanto mais funda e lúgubre a descida
Mais alta é a ladeira que não cansa!

E, acabada a tarefa... em paz, contente,
Um dia adormecer, serenamente,
Como dorme no berço uma criança!

Florbela Espanca
(Charneca em flor - He hum não querer mais que bem querer)
Há palavras que nos beijam
Como se tivessem boca.
Palavras de amor, de esperança,
De imenso amor, de esperança louca.

Palavras nuas que beijas
Quando a noite perde o rosto;
Palavras que se recusam
Aos muros do teu desgosto.

De repente coloridas
Entre palavras sem cor,
Esperadas inesperadas
Como a poesia ou o amor.

(O nome de quem se ama
Letra a letra revelado
No mármore distraído
No papel abandonado)

Palavras que nos transportam
Aonde a noite é mais forte,
Ao silêncio dos amantes
Abraçados contra a morte.

Alexandre O'Neill

Cet amour

Cet amour
Si violent
Si fragile
Si tendre
Si désespéré
Cet amour
Beau comme le jour
Et mauvais comme le temps
Quand le temps est mauvais
Cet amour si vrai
Cet amour si beau
Si heureux
Si joyeux
Et si dérisoire
Tremblant de peur comme un enfant dans le noir
Et si sûr de lui
Comme un homme tranquille au milieu de la nuit
Cet amour qui faisait peur aux autres
Qui les faisait parler
Qui les faisait blêmir
Cet amour guetté
Parce que nous le guettions
Traqué blessé piétiné achevé nié oublié
Parce que nous l’avons traqué blessé piétiné achevé nié oublié
Cet amour tout entier
Si vivant encore
Et tout ensoleillé
C’est le tien
C’est le mien
Celui qui a été
Cette chose toujours nouvelle
Et qui n’a pas changé
Aussi vrai qu’une plante
Aussi tremblante qu’un oiseau
Aussi chaude aussi vivant que l’été
Nous pouvons tous les deux
Aller et revenir
Nous pouvons oublier
Et puis nous rendormir
Nous réveiller souffrir vieillir
Nous endormir encore
Rêver à la mort,
Nous éveiller sourire et rire
Et rajeunir
Notre amour reste là
Têtu comme une bourrique
Vivant comme le désir
Cruel comme la mémoire
Bête comme les regrets
Tendre comme le souvenir
Froid comme le marbre
Beau comme le jour
Fragile comme un enfant
Il nous regarde en souriant
Et il nous parle sans rien dire
Et moi je l’écoute en tremblant
Et je crie
Je crie pour toi
Je crie pour moi
Je te supplie
Pour toi pour moi et pour tous ceux qui s’aiment
Et qui se sont aimés
Oui je lui crie
Pour toi pour moi et pour tous les autres
Que je ne connais pas
Reste là
Lá où tu es
Lá où tu étais autrefois
Reste là
Ne bouge pas
Ne t’en va pas
Nous qui nous sommes aimés
Nous t’avons oublié
Toi ne nous oublie pas
Nous n’avions que toi sur la terre
Ne nous laisse pas devenir froids
Beaucoup plus loin toujours
Et n’importe où
Donne-nous signe de vie
Beaucoup plus tard au coin d’un bois
Dans la forêt de la mémoire
Surgis soudain
Tends-nous la main
Et sauve-nous.

 Jacques Prévert (Paroles)

Iremos juntos sozinhos pela areia
Embalados no dia
Colhendo as algas roxas e os corais
Que na praia deixou a maré cheia.

As palavras que me disseres e que eu disser
Serão somente as palavras que há nas coisas
Virás comigo desumanamente
Como vêm as ondas com o vento.

O belo dia liso como um linho
Interminável será sem um defeito
Cheio de imagens e conhecimento.

Sophia de Mello Breyner Andresen
(No tempo dividido)
Não só quem nos odeia ou nos inveja
Nos limita e oprime; quem nos ama
Não menos nos limita.
Que os deuses me concedam que, despido
De afectos, tenha a fria liberdade
Dos píncaros sem nada.
Quem quer pouco, tem tudo; quem quer nada
É livre; quem não tem, e não deseja,
Homem, é igual aos deuses.

Ricardo Reis
(Odes)

Quase nada

Passo e amo e ardo.
Água? Brisa? Luz?
Não sei. E tenho pressa:
levo comigo uma criança
que nunca viu o mar.

Eugénio de Andrade
(Mar de Setembro)

Solo

A veces te perguntas
qué será de tu vida
en caso de que sigas
y sigas solo.
Asomado al balcón
de la plaza desierta,
las horas no son horas,
los días no son días
si nadie los comparte
contigo, si no sientes
el calor de otra mano
junto a la tuya. Pero
como abrir esa puerta.
La que quizá no existe.

Vicente García

Os amigos

Os amigos amei
despido de ternura
fatigada;
uns iam, outros vinham,
a nenhum perguntava
porque partia,
porque ficava;
era pouco o que tinha,
pouco o que dava,
mas também só queria
partilhar
a sede de alegria -
por mais amarga.

Eugénio de Andrade
(Coração do Dia)
Tão cedo passa tudo quanto passa!
Morre tão jovem antes os deuses quanto
Morre! Tudo é tão pouco!
Nada se sabe, tudo se imagina.
Circunda-te de rosas, ama, bebe
E cala. O mais é nada.

Ricardo Reis
(Odes)

As palavras

São como um cristal,
as palavras.
Algumas, um punhal,
um incêndio.
Outras,
orvalho apenas.

Secretas vêm, cheias de memória.
Inseguras navegam:
barcos ou beijos,
as águas estremecem.

Desamparadas, inocentes,
leves.
Tecidas são de luz
e são a noite.
E mesmo pálidas
verdes paraísos lembram ainda.

Quem as escuta? Quem
as recolhe, assim,
cruéis, desfeitas,
nas suas conchas puras?

Eugénio de Andrade
(Coração do Dia)

HAI-KAI

Nós temos cinco sentidos:
são dois pares e meio d'asas.
- Como quereis o equilíbrio?

David Mourão-Ferreira
(Os quatro cantos do tempo)